terça-feira, 30 de novembro de 2010

Ricardo Reis

Acima da Verdade

Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.
Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,

Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.

Ricardo Reis

Fernando Pessoa

LISBON REVISITED (1926)


Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e
[necessárias.
Correram cortinas por dentro de todas as
[hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achada o número da porta que
[me deram,

Acordei para a mesma vida para que tinha
[adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem
[sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha
[angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me
[náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos
[um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa
[nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas
[falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter
sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em
Deus.

Outra vez te revejo.
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui
[voltei.
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-
[-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de ,
[mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado
[de mim -
Um bocado de ti e de mim!... ..

FERNANDO PESSOA
NAS NOSSAS RUAS AO ANOITECER
MÁRIO CLÁUDIO
Antologia de Poesia sobre Lisboa
com um pormenor de uma pintura de Carlos Botelho
colecção pequeno formato
Edições ASA
2001

Álvaro de Campos

Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto. ..
Sim o resto parece-se apenas com a vida.
Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas
Onde sofrer seja uma cousa mais suave.
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Álvaro de Campos

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Alberto Caeiro

XXI

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma cousa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva. . .

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica. . .
Assim é e assim seja...

ALBERTO CAEIRO
O Guardador de Rebanhos
POESIA
edição
Fernando Cabral Martins
Richard Zenith
Obras de Fernando Pessoa
Assírio & Alvim
2001

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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Daniel Blaufuks



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Alberto de Lacerda

Soneto do Único Amor.

Fios de ouro na voz e nos cabelos
Andar, o andar do ar, se o ar andasse;
Olhos azuis horizontais e belos
Como se a luz do mar os inventasse:

Recordações sem conto se porfiam
Em desgastar no tempo o fio ardente
E inquebrantável, onde morriam
Desde o início, futuro e presente.

Fria talvez, de chama que morreu,
Muito anterior à Terra; o corpo de ave
Plácida e presa, deusa que desceu

E quebrou portas que não tinham chave:
Essa a medusa que eu fitei sem esperança,
Praia sem água, vida sem mudança.

Alberto de Lacerda
Oferenda
I
Imprensa Nacional-Casa da Moeda

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sábado, 27 de novembro de 2010

Fotografia

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Carlos Marzal

Talvez não exista o tempo - dizem isso alguns.
O presente talvez contenha todo
o futuro que espera e o passado
em que fomos outros. Dizem isso.
O tempo, para mim, que sei que as palavras
são um jogo qualquer com que passar o tempo,
é feito pelos rostos dos desconhecidos
em estações, e pelos vidros de espelhos
nos quais o meu fantasma se deteve,
por mentiras que já não distingo da verdade,
pela antiga dor, que não há-de ser nomeada,
aqueles a quem amei e perdi, despenhadeiro abaixo,
confusão e derrota, névoa e ruído.
O tempo é o que invento para escapar a tempo.

Não sei como há quem pense que o tempo não é real.
(Alguns, só por falar, inventam um absurdo demónio,
a quem terminam oferecendo a alma.)
O tempo não é um sonho, e para demonstrá-lo
aqui está o próprio tempo, que converte
estas palavras e quem as pronuncie
em carne de um esquecimento sem remédio.

Carlos Marzal
tradução de Joaquim Manuel Magalhães
aqueles que têm os ossos frágeis
nº 2 primavera / verão 1999

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Ingborg Bacham

Desprende-te, coração, da árvore do tempo,

soltai-vos, folhas, dos ramos esfriados,

outrora abraçados pelo sol,

soltai-vos como lágrimas de olhos largos de longes.


Esvoaça ainda a madeixa dias inteiros ao vento

na fronte tisnada do deus do campo,

sob a camisa aperta o punho

já a ferida aberta.


Por isso resiste, quando o dorso macio das nuvens

voltar a curvar-se para ti,

não te iludas se o Himeto te encher

de novo os favos.


De pouco vale ao lavrador uma erva na seca,

de pouco um verão, face à nossa grande estirpe.

E que testemunha afinal o teu coração?

Entre ontem e amanhã balança,

silencioso e estranho,

e o seu bater

é já a sua queda para fora do tempo.

Ingborg Bacham

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Paul Celan

CANÇÃO DE UMA DAMA NA SOMBRA

Quando vem a taciturna e poda as tulipas:
Quem sai ganhando?
Quem perde?
Quem aparece na janela?
Quem diz primeiro o nome dela?

É alguém que carrega meus cabelos.
Carrega-os como quem carrega mortos nos braços.
Carrega-os como o céu carregou meus cabelos no ano em que amei.
Carrega-os assim por vaidade.

E ganha.
E não perde.
E não aparece na janela.
E não diz o nome dela.
É alguém que tem meus olhos.
Tem-nos desde quando portas se fecham.
Carrega-os no dedo, como anéis.
Carrega-os como cacos de desejo e safira:
era já meu irmão no outono;
conta já os dias e noites.

E ganha.
E não perde.
E não aparece na janela.

E diz por último o nome dela.
É alguém que tem o que eu disse.
Carrega-o debaixo do braço como um embrulho.
Carrega-o como o relógio a sua pior hora.
Carrega-o de limiar a limiar, não o joga fora.

E não ganha.
E perde.
E aparece na janela.
E diz primeiro o nome dela.
E é podado com as tulipas.

Paul Celan

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Omar Khayyam

O amor que não devasta não é amor.
Um tição espalha acaso o mesmo calor que uma fogueira?
Noite e dia, durante a vida inteira,
o verdadeiro amante se consome na dor e no prazer.

Omar Khayyam

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Fotografia

Posted by Picasa

António Osório

O tempo
escava sobre ti.

Eras e és o rio,
montante cavalo
de ondas.

E vale,
mulher lavando,
rectilínea salina.

A foz, longe ou perto.
Como acompanhar
tuas ondas?

António Osório
O Lugar do Amor
Círculo de Poesia
Nova Série
Moraes Editores
1985

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Manuela Cristóvão





Exposição de obras de Manuela Cristóvão na Galeria Prova de Artista

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sábado, 20 de novembro de 2010

Julião Sarmento


Pikkie's Dream, 2009
Polyvinyl acetate, pigments, acrylic gesso, graphite and silkscreen print on cotton canvas
193 x 197 x 6 cm

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Georges Braque

Georges Braque
Violin and Candlestick

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T. S. Eliot

COMO DAR NOMES AOS GATOS


Dar nomes aos gatos é uma questão difícil,
Não é nenhum jogo de férias;
Podeis pensar que sou doido varrido
Quando vos digo que um gato deve ter TRÊS DIFERENTES NOMES
Antes de mais nada, há o nome que a família emprega diariamente,
Tal como Peter, Augustus, Alonzo ou James,
Tal como Victor ou Jonathan, George ou Bill Bailey -
Todos eles sensatos nomes de todos os dias
Há nomes de maior fantasia se achais que soam melhor,
Alguns para cavalheiros, alguns para as damas:
Tais como Plato, Admetus, Electra, Demeter,
Mas todos eles sensatos nomes de todos os dias
Mas, digo-vos eu, um gato precisa de um nome que seja particular,
Um nome que seja peculiar, e mais dignificado,
Senão, como pode ele manter a cauda perpendicular,
Ou estender os bigodes, ou encarecer o orgulho?
De nomes desta espécie dou-vos um quórum,
Tais como Muskustrap, Quaxo ou Coricopat,
Tais como Bombalurina, ou então Jellylorum -
Nomes que nunca pertencem a mais do que um gato
Mas, mais acima e mais além, falta ainda outro nome,
E esse é o nome que jamais adivinhareis;
O nome que nenhuma investigação humana pode descobrir -
Mas o PRÓPRIO GATO sabe-o, e nunca confessará.
Quando se vê um gato em profunda meditação,
A razão, digo-vos eu, é sempre a mesma:
O seu espírito está em ávida contemplação
Do pensamento, do pensamento, do pensamento do seu nome:
Do seu inefável efável
Efaninefável
Profundo e incontável singular Nome.




T. S. Eliot


(1888-1965)



(in «Assinar a Pele - Antologia
de Poesia Contemporânea sobre Gatos»,
Tradução de João Luís Barreto Guimarães)

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José Carlos Barros

A IMPOSSIBILIDADE DO AMOR

Um inverno que levasse tudo. As folhas,
os caules, os ramos secos de novembro,
a gramática, o ardor remanescente
de criança suja brincando nos telhados
dos armazéns. Pouco ficou desses
desenhos, o cinzento das fábricas,
a pressentida sombra da idade, o pó do
ouro soprado contra os vasos altos
do armário. E agora é tarde, a inocência
em travessia difícil contra os vidros
do passado, o ultraje da lírica exposto
nas praças. Já nem procuras, como se
um cão abandonado te esperasse à
porta para a impossibilidade do amor.

José Carlos Barros
Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa
Coordenação de Pedro Mexia
O Contador de Histórias
Câmara Municipal de Tomar
1997

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domingo, 14 de novembro de 2010

Passos

Mário Henrique Leiria

Discussão

- Desconfio que a democracia não resulta. Juntam-se astronautas, bodes,
camponeses, galinhas, matemáticos e virgens loucas e dão-se a todos os
mesmos direitos.
Isso parece-me um erro cósmico. Desculpa.

Desculpei mas fiquei ofendido. Que a democracia era aquilo mesmo, e ainda
com conversa fiada como brinde, isso sabia eu. Que mo viessem dizer,
era outra coisa.
Fiquei ainda mais ofendido, até porque não gosto de erros cósmicos.
Acho um snobismo.

- Eu sou democrático - rugi entre dentes, como resposta. - Tenho amigos no exílio,
todos democráticos.
Foram para lá por serem democráticos. É um sacrifício que poucos fazem,
ir para o exílio e ser professor universitário exilado e democrático.
Eras capaz de fazer isso ?

- Não sou democrático.

Não havia resposta a dar. nenhuma. Ele não era democrático, não
sabia de democracia.

Eu sim, sou democrático, até já quis ir à América, que me afirmaram que
lá é que é a democracia.

Recusaram-me o visto no passaporte, disseram que eu era comunista!
Viram isto ?



Mário Henrique Leiria
Contos do Gin-Tonic

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Luiza Neto Jorge

Algo se me assemelha
e me quer para si

me desembainha
quando menos espero

Distorção do espírito
para a morte

como o corpo num salto
irremediavelmente
lento
e
alto



Luiza Neto Jorge
Terra Imóvel
Poesia
organização e prefácio de
Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim
2ª edição
2001

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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

MINIMALISMO

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Calçada da Glória

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Eva Christina Zeller

AUTO-RETRATO

Para onde quer que vá
já lá estive
o que quer que faça
não posso decidir
quem quer que eu ame
é uma parte
por muito que morra
fico com vida

Eva Christina Zeller
Sigo a Água
Tradução e prefácio de
Maria Teresa Dias Furtado
Relógio d´Água
1996

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