domingo, 21 de março de 2010

Dia Mundial da Poesia

Hoje decidi escolher as poesias para colocar aqui um pouco ao acaso, mas obedecendo a um princípio: a qualidade.
Ei-las

4 -

Amo-te
— diríamos nós,
no exacto instante de lhe cravar o punhal
no meio do peito.

E depois
desejaríamos que se fizesse luz,
uma grande luz branca,
o sol,

para vermos o sangue correr e,
possivelmente,
afogar a nossa boca no sangue amado.

Para conhecermos tudo,
até ao fundo
e até ao fim.

Porque o amor e o conhecimento
são as artes do crime.

Tenho um ramo de flores para ti,
diz o amante:
são flores, venenosas.

Mas toda a gente sabe isto:
ninguém deseja nada do amor.

É o tema eleito das palavras.

Eis a razão por que o outro
está escondido na praça,
ao meio da qual existe um largo fontanário,
com a sua rodada taça de pedra,
de onde transborda uma água
silenciosa e dormente.

A brasa do cigarro
marca uma curva no ar
e cai na água.

É um indício.
Ele está ali, bem perto.
Mas depois
tudo será mais difícil.

Porque
será a perseguição declarada,
sem o pretexto de pedir lume.

Também não haverá já
a indicação do lume, no meio da noite
o sinal de que ali está a pessoa,
viva,
fumando,
respirando,
tremendo.

Porque foges?,
e enquanto,
no mais secreto da sua aflição,
ele o pergunta,
corre em direcção ao fontanário
e quase esbarra com o outro.

Sentem-se,
mútuos,
únicos,
arfam no escuro da praça,
a treva treme levemente
na água adormecida.

Mas ele diz
(e quem sabe se isso é absurdo?)
diz: lume,
e o outro escapa-se,
e põe-se a correr em volta
do fontanário.

Os sapatos
chapinham na água e a ele,
que já começou a persegui-lo,
correndo também em torno da taça de pedra,
chapinhando do mesmo modo
na água vazada,
ocorre-lhe um insólito pensamento:
caminhamos sobre as águas.

Então abranda um pouco a corrida,
inclina o corpo para a direita,
e mete a mão na água da taça.

É um ruído novo,
virgem,
e o contacto da sua carne com a água
faz nascer em si uma confusa alegria,
o sentido de uma festa natural,
o desejo de morrer ali,
agora,
triunfalmente.

E o outro?
o outro foge,
e como não abrandou o passo,
nem mergulhou a mão na água,
nem pensou (supõe-se) na alegria
de uma festa mortal,
o outro adiantou-se,
e já se encontra no lado oposto
do fontanário.

E é ágil,
essa criatura sem nome,
o ser que se ama,
aquele que se persegue
e a quem se deseja conhecer,
para suplicar lume,
ou voz,
ou vida,
ou sangue,
ou sabe--se lá o quê.

Corre depressa demais.
E andando em círculo,
chapinhando sempre na água,
e às vezes pensando ainda:
caminhamos sobre as águas,
ele sente,
súbito,
que o outro avançou bastante.

Treme de medo,
porque o outro avançou tanto
que já ultrapassou o ponto onde,
com o ponto onde ele se encontra,
formava os extremos do diâmetro
do círculo.

E isto significa:
o outro é agora o perseguidor.

E, como avança cada vez mais,
torna-se cada vez mais no perseguidor,
e ele no perseguido.

Talvez o outro pense:
porque foges?,
e lhe queira pedir a sua voz,
o seu amor,
o seu sangue.

É quando sente perto da nuca
a respiração do outro.

Tem tempo apenas para desviar-se,
correr para a esquerda,
atravessar a praça
e meter por uma ruela negra.

Mas, parando um instante,
ouve os passos do outro na sua direcção.

E então foge através do bairro,
do tempo,
de pedra em pedra,
com o seu pavor de animal perseguido,
ouvindo o bater implacável
dos pés do outro.

Haveria palavras para ouvir,
a antiquíssima súplica do perseguidor:
porque foges?

E que poderia ele dizer?:
tenho medo?

Não se sabe bem o que acontece.

As palavras nunca mais acabariam,
enredar-se-iam umas nas outras,
seria um jogo mortal.

Não mais haveria
a suspensão do irremediável,
esta espécie de silêncio na beira do crime,
no qual sabemos,
com dor,
que ainda estamos vivos.

Ele foge.

Quem sabe
se a noite terá fim?

Herberto Hélder


O MEU POVO

Apodrece o rochedo
De onde provenho
E a quem entoo os meus cânticos sagrados...
Subitamente, caio do caminho
E começo a brotar interiormente
Para a distância, só, sobre pedras de lamentação,
Em direcção ao mar.

Jorrei-me para tão longe
Do mosto mal fermentado
Do meu sangue.
E sempre e ainda o eco
Dentro de mim,
Quando, voltado para Oriente,
O corpo de rochedo apodrecido,
O meu povo,
Lança um grito terrível para Deus.

ELSE LASKER-SCHÜLER
1869-1945)
Alemanha

POR DETRÁS DE STOWE

Ouvi um duende que passava a assobiar,
um assobio suave como a erva iluminada pela lua,
que me atraiu como um cordão de prata
para onde as borboletas pálidas e poeirentas voam,
e trazem magia enquanto passam;
e ali ouvi um grilo a cantar.

o seu canto ecoava de uma ponta à outra
da escuridão sob uma árvore batida pelo vento
onde reluziam as asas de pequenos insectos.
O seu canto fendeu o céu em dois.
As metades caíram à minha volta,
e fiquei hirta, resplandecente com os anéis da lua.

Elizabeth Bishop
(1911-1979)
E.U.A.
TRAD.: MARIA DE LOURDES GUIMARÃES

BALADA DA VIDA EXTERIOR

E crianças crescem com olhos fundos,
Que nada sabem, crescem e logo morrem,
E toda a gente segue o seu caminho.

E frutos doces saem dos amargos
E caem de noite, pássaros mortos,
E ali ficam uns dias e apodrecem.

E o vento sopra sempre, e sempre nós
Ouvimos, dizemos muitas palavras
E sentimos prazer, membros cansados.

E estradas cortam campos, e lugares
Há-os aqui e ali, com luzes, árvores, lagos,
E ameaçadores, secos, já mortos...

Quem os ergueu? Para quê? Nenhum é igual
Aos outros. E são tantos, não têm fim...
Que mão nos manda riso, choro, pavor?

De que serve tudo isso e estes jogos,
A nós, já grandes e eternamente sós
E sem buscar um fim nesta jornada?

De que serve ter visto tanta coisa?
E afinal muito diz quem só diz «noite»,
Palavra de onde escorre triste melancolia

Como mel espesso de favos vazios.

HUGO VON HOFMANNSTHAL
(1874-1929)
Áustria
TRAD.: JOÃO BARRENTO
Rosa Do Mundo
2001 Poemas para o Futuro
Assírio & Alvim

MEU TÚMULO

No topo da serra distendem minha tumba,
Entre uivos de lobo e sons de folhas de chumbo.

Tormentas de verão e a neve da invernada,
Em trilha isolada que em silêncio me guarde.

Ponham-me bem alto, como a nuvem e o trono,
Para que não chegue o distante som do sino,

Para que não chegue o arrependimento a voz,
Nem mesmo as rezas e o temor do converso.

E que ela verdeça junto ao tronco espinhoso,
Bem intransponível, vergada sobre o abismo.

E que ninguém possa vir, somente os amigos,
E estes, no regresso, que os seus rastros apaguem.

Ivan Goran Kovacic
(1913-1943)
Croácia
TRAD.: ALEKSANDAR JOVANOVIC
Rosa Do Mundo
2001 Poemas para o Futuro
Assírio & Alvim

A ROSA

A rosa
A rosa
A rosa

Ele levou-me a um roseiral
E, no escuro enfiou uma rosa nos meus cabelos excitados
Por fim
Dormiu comigo sobre uma pétala de rosa.

Oh vós, pombas deformadas
Oh vós, árvores inexperientes, velhas e estéreis
janelas cegas
Debaixo de meu coração e nas profundezas de minha bacia
Brota agora uma rosa

Uma rosa vermelha
Vermelha
Como uma bandeira no dia da
Ressurreição.

Ah, estou grávida, grávida, grávida.

FORUGH FARROKHZAD
(1935-1967)
Irão
Trad.: Kurt Sharf
Rosa Do Mundo
2001 Poemas para o Futuro
Assírio & Alvim

O BALCÃO DAS NOVE DA TARDE

do teu vivo desejo quase não sabes que dizer
se os passos se encurtam ou alargam na ferida
quase não sabes que alcançar seus seios
é um primeiro sonho
que morre se não murmura o rouxinol.
a quem podes, então, tu perguntar
senão a essas ignaras lonjuras?
e quem pode saber qual é a senda
até esse rouxinol calado das nove
se o seu balcão perdido se fechou
entre a sombra e as palmeiras?

oh balcão enverdecido, extraviado
e enigmático pelas nove!
não ficarão as flores, não estarão o amante e a guitarra,
não ficarão os versos
perguntando pela princesa totalmente adormecida.
no balcão que se desmorona
ainda que sejam nove da tarde.

SAADI YUSUF
(n. 1934)
Iraque
TRAD.: ADALBERTO ALVES
Rosa Do Mundo
2001 Poemas para o Futuro
Assírio & Alvim

Nada duas vezes

Duas vezes nada acontece
nem acontecerá. E assim sendo,
nascemos sem prática
e sem rotina vamos morrendo.

Nesta escola que é o mundo,
mesmo os piores
nunca repetirão
nenhum Inverno, nenhum Verão.

Os dias não podem ser repetidos,
não há duas noites iguais,
não há dois beijos parecidos,
não se troca o mesmo olhar.

Ontem, o teu nome
em voz alta pronunciado
foi como se uma rosa
me tivessem atirado.

Hoje, ao teu lado
voltei a cara para a parede.
Rosa? O que é uma rosa?
Será flor? Talvez rocha?

Porque tu, ó má hora
me trazes a vã tristeza?
Se és, tens de passar.
Passarás - e daí a tua beleza.

Abraçados, enlevados,
tentaremos vencer a mágoa,
mesmo sendo diferentes
como duas gotas de água.

in "Wotanie do Yeti"
(Chamada para Yeti). 1957
Wislawa Szymborska
Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska
Alguns gostam de poesia
Antologia
Selecção, introdução e tradução do polaco
Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves
cavalo de ferro

TEM CUIDADO COM O QUE DIZES, MENINA

Tem cuidado com o que dizes, menina,
quando usas as palavras para conversar, as palavras -
pois as palavras são feitas de sílabas

e as sílabas, menina, são feitas de ar-
e o ar é tão fino - o ar é o sopro de Deus -
o ar é mais delicado do que o fogo ou a neblina,

mais delicado do que a água ou o luar,
mais delicado do que as teias de aranha sob a lua,
mais delicado do que as flores aquáticas de manhã:

e as palavras são fortes também,
mais fortes do que os rochedos ou o aço,
mais fortes do que as batatas, o milho, peixe, gado,

e delicadas, também, delicadas como ovos de pomba,
delicadas como a música das asas dos colibris;
assim, menina, quando proferires saudações,
quando contares anedotas, exprimires desejos ou
disseres orações,
sê cuidadosa, sê descuidada, sê cuidadosa,
sê o que te apetecer.

Carl Sandburg (1878-1967)
Antologia de poesia anglo-americana
De Chaucer a Dylan Thomas
Selecção, tradução, prefácio e notas de
António Simões
Campo das Letras


ONTEM


Ontem toda a manhã foi quarta-feira.
Pela tarde mudou:
pôs-se quase segunda,
a tristeza invadiu os corações
e ouve um claro
movimento de pânico para os
eléctricos
que levam os banhistas para o rio.

Por volta das sete houve no céu
uma lenta avioneta, e nem as crianças
a olharam.
Desatou-se
o frio,
alguém saiu à rua com chapéu,
ontem, e todo o dia
foi igual,
vede lá,
que divertido,
ontem e sempre ontem e assim até agora,
continuamente andando pelas ruas
gente desconhecida,
ou dentro de casa a merendar
pão e café com leite, - que
alegria!

A noite veio cedo e acenderam-se
candeeiros cálidos e amarelos,
e ninguém pôde
impedir que por fim amanhecesse
o dia de hoje,
tão parecido,
mas
tão diferente em luzes e aroma!

Por isso mesmo,
porque é como vos digo,
deixai-me que vos fale
de ontem, uma vez mais
de ontem: o dia
incomparável que já ninguém nunca
voltará a ver jamais na terra.

Angél Gonzalez
Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea
Selecção e Tradução de José Bento
assírio e alvim
1985


PEQUENO POEMA INFINITO


Enganar-se no caminho
é chegar à neve
e chegar à neve
é pastar durante vinte séculos as ervas dos cemitérios.

Enganar-se no caminho
é chegar à mulher,
a mulher que mata dois galos num segundo,
a luz que não teme os galos
e os galos que não sabem cantar sobre a neve.

Mas se a neve se engana do coração
pode vir o vento austro
e como o ar não faz caso dos gemidos
teremos de pastar outra vez as ervas dos cemitérios.

Eu vi duas dolorosas espigas de cera
que enterravam uma paisagem de vulcões
e vi dois meninos loucos que empurravam chorando as pupilas de
um assassino.

Mas o dois não foi nunca um número
porque é uma angústia e a sombra,
porque é a guitarra onde o amor se desespera,
porque é a demonstração de outro infinito que não é seu
e é as muralhas do morto
e o castigo de uma nova ressurreição sem nenhum final.
Os mortos odeiam o número dois,
mas o número dois adormece as mulheres
e como a mulher teme a luz
a luz treme diante dos galos
e os galos só sabem voar sobre a neve
teremos que pastar sem descanso as ervas dos cemitérios.

FEDERICO GARCÍA LORCA
1898-1936
MESA DE AMIGOS
versões de poesia
por
Pedro da Silveira


A CABRA CONTEMPORÂNEA


A cabra come as rosas dos jardins municipais
trinca os eléctricos como cenouras cruas
não vai de manhã para o escritório
não lê o jornal da tarde
despe os pilares do telégrafo como amoreiras
ignora os semáforos sem vergonha
não deseja ter limusine e juro:
ainda não patenteou a erva artificial
embora perceba alguma coisa de florestas.
A estátua da baixa foi mudada
a cidade embala-se num baloiço de fumo
apenas esta cabra teimosa
dá leite e não pergunta como.

Mircea Dinescu
Em voz alta
Poesia & Performance
Porto 2001
Campo das Letras


Numa cor mais alegre mais aberta

rasa de luz se abre a nova rosa
alisa as suas pétalas que elidem o tempo
grácil na sua leveza pura adolescência
sinal de um momento anúncio de um sim
promessa de um sempre que o Deus ausente
consuma e liberta porque essa ausência é fértil
na profusão invisível do seu arco de luz
Dele solta uma flecha pura vibração
que todos os espaços livre atravessa
e cumpre ao soltar-se a pausa
de uma coluna nenhuma esperança é vã
na duração obscura o bálsamo derrama-se
nas atormentadas cabeças quem vacila ganha
o formoso vigor dos seus primeiros passos
Extremo sortilégio o dessa mão sem mão
o desse coração aberto como nascente
o desse olhar sem olhos o dessa palavra sem som
O eco que se molda é absoluta transparência
o ardente esplendor traça os seus contornos
a lucidez respira esse momento solar
na permanência exclui todo o anónimo fluir
e cada ser é novo na novidade do seu nome

Maria Teresa Dias Furtado
25 de Março de 1993


ME AND MY GIN

Bessie, áspero nome de mulher.
Houve quase nunca mas mesmo assim houve
quem com fúria cantasse o excesso.
Vozes todas que há muito se calaram. Quem
puder que ignore o seu grito - é a
frivolidade das coisas que nos dizima,
enquanto a alma, indiferente, se
senta numa cadeira eléctrica
parecida com o tempo.

Tão sedutor esse pecado, a ferida
inocência de ver o mundo
através do vidro fosco de uma garrafa,
sabendo que a extrema-unção será
um trombone desvairado.

É teu o meu gin, as mãos que desfalecem
em canções muitas vezes impossíveis.
O inferno, a voz torturada
onde um apelo cessou:

Can't you hear me bleeding?
You've got to give me some.

Manuel de Freitas
poezz
Jazz na Poesia em Língua Portuguesa
José Duarte | Ricardo António Alves
Almedina

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2 Comentários:

Blogger Ludmylla disse...

maravilhosas poesias escolhidas, parabéns

28 de março de 2010 às 01:30  
Blogger f. disse...

Obrigada, Ludmylla :)

28 de março de 2010 às 02:53  

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