segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Jorge Guimarães

SÉTIMA ODE

ENVOLTA EM MUSSELINA

Senti nos pés a casca fina da terra
cortando o espaço sem fundo e sem limite,
o brilho das estrelas agulhava o espaço
chegando e partindo e sem mais nada.
Ressenti nos meus pés uma tremura do astro
que um momento vacilou roçando alguma coisa,
era de noite, os bichos estridulavam o seu canto
e o vento invisível remexia nas folhas.
Quando, de súbito, na mudez da madrugada,
envolta em musselina, apareceu a Lua,
sacudiu pela casa as rendas velhas,
pendurou nos sobreiros a sua roupa íntima
e sempre sem se mostrar enquanto se despia
desarrumou o céu sem cerimónia.
As sombras do luar fizeram-se veludo,
as árvores na luz agitavam os braços,
e o vento movia-se sem fazer barulho
passando rápido no côncavo do bosque.
Os mil ruídos perdiam-se nas bermas do silêncio,
silêncio atravessado de infinito,
silêncio que vem de tudo estar tão longe
que as estrelas todas me caberiam nas mãos,
silêncio onde a luz passa e a treva funde,
varridos pelo farol do olhar, que pára
o pensamento, como a palha sustém o luar,
silêncio que tão alto se despenha e tão profundo
que surge mais espesso que a montanha
e mais duro que a pedra com que atinge
o cisne deslizando na planície,
o silêncio entorna-se no ar
atravessando, mais que a luz, os corpos,
feito de vazio, feito de nada, feito de não existir,
feito de uma solidão tão grande
que fossem cegos os olhos das estrelas,
feito de uma vastidão tão lata
que o olhar se partisse e o juízo gelasse,
e como se de súbito do nada
a sua voz aos poucos espargisse
a impalpável cinza deste sonho,
que sonho, e com meus olhos visse,
a visão deste cego, desterrada,
fosse, para além da superfície,
o eco de uma casa abandonada.

3.30, 11/7/87, Lisboa.

Jorge Guimarães
ODES NOCTURNAS
Guimarães Editores

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1 Comentários:

Blogger Efigênia Coutinho ( Mallemont ) disse...

Olá Poeta Jorge Guimarães, aqui cheguei, e ao ler sua poesia, não poderia me furtar em lhe dar meus cumprimentos, uma alma que reluz muita luz poética, Parabéns, desejando sempre muito sucesso,
Efigênia Coutinho
AVSPE - Presidente Fundadora
www.avspe.eti.br/

19 de janeiro de 2009 às 17:53  

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