terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Herberto Helder

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Apenas te digo o ouro de uma palavra no meio da névoa,
formosura inclinada sobre a cinza descerrada
e o frio dos retratos.
Espero que a seiva ascenda a um puro gosto
de reaver tua grave cabeça de mãe
com platina entre a aragem. Que se inspire na seiva
o vermelho de uma face
adormecendo no vinho, acordando
para o início das primaveras.
Peço que os dedos não esqueçam o pão e a tristeza
e a boca vibre como um pensamento
na substância de um instante
carnal, irremovível.


E se morrer é a alta vocação das manhãs marcadas pelas uvas
- peço, mãe um dia
composta sobre a veemente confusão das forças
e dos números, que resguardes
entre as descuidadas dobras de pedra
o fulgor de onde plátanos e aves recebiam
a doce e dolorosa vida
da beleza.


Rente ao tempo que nos cobria
de previsão e silêncio,
arrefecem os sentidos sobre o teu rosto selado.
Pequena e imensa coisa no alto das águas,
no fundo de sementes desmemoriadas - mãe
engolfada no leite renascente,
para ti se elevam os lábios tocados pelo sumo
incompleto, o sono da próxima
incontida primavera.


Tudo o que se diga está vivo na frescura de um coração
novo. Por isso o ouro, o inseguro passo
de um dia que traz a morte em sua intensa
juventude, roça a forma do espírito
em que tu mesma te buscavas - quente e rápida
em nós, no equilibrado idioma
de fomes e sorrisos que nunca
se decifram.


Num lugar onde a sombra é gémea
do fogo irrevelado, não há
morte que se não destine a um escarlate
de rosa. Nunca se adormece
que não seja para ler um estuante anúncio
nas pálpebras que se apagam.


Nasces da melancolia, e arrebatas-te.
Como os bichos nascem da matéria dos seus dias,
como os frutos vacilam no bojo das auroras
e se embebem até que o tempo os faz

violentos,

cerrados,

palpáveis.



Herberto Helder
"FONTE", in Poesia Toda
Assírio & Alvim
1998

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