terça-feira, 29 de março de 2011

O boneco centenário

Giuseppe Ungaretti


NO ENTRE-SONO

Valloncello di Cima Quattro, 6 de Agosto de 1916

Presencio a noite violentada
O ar está crivado
como uma renda
pelos tiros de espingarda
dos homens
recolhidos
nas trincheiras
como os caracóis em sua casca

Parece-me
que uma pressurosa
multidão de canteiros
pica a calçada
de pedra de lava
das minhas ruas
e que eu o escuto
sem ver
no entre-sono

Giuseppe Ungaretti
Vida de um Homem
Texto bilingue
Tradução do italiano por
Luís Pignatelli.
Hiena Editora
1997

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quinta-feira, 17 de março de 2011

Luís Quintais


Arte privada

Deveria ter feito da minha música um amor mais silencioso
como se de uma arte privada se tratasse.

A ti, a quem falo de poesia, a ti
que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que não compreendes,
respondo-te que também eu não compreendo,
que não há que compreender,
porque nada nos condena à fala
antes que as palavras aconteçam.

Por exemplo, esse poema começado numa manhã de Junho
e nunca terminado: um princípio de verão,
a janela que dá para o alcatrão sem tráfego serpenteando pelas
                            [colinas.
A rua de dia de semana
e o arquipélago da solidão despertando
as poucas coisas que procuro
e que o poema irá entretecer
se entretecer. -
A virtude que, cega,
vai conhecendo o seu caminho.
Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras,
e se ficamos tristes não era para ficarmos,
pois não existem momentos irrepetíveis.
Eles aninham-se no sangue
e voltam a mergulhar-nos na experiência:
um dia de verão, um bosque, colinas
onde a serpente de alcatrão se enrola.
A ausência de tráfego como motivo.

A pouco e pouco vou recuperando a gravura.
Agora sei que havia uma ave sobre as colinas,
pois há sempre uma ave, ou a sombra dela,
nos meus poemas. Que havia água,
o cheiro das inusitadas chuvas
pela manhã de Junho.

O rumor da imagem colado aos dedos.
O ocre escuro das areias espalhado na mesa
é um símbolo da infância,
mas não o reconheço ainda.
O poema é uma enumeração que não teve lugar,
que nunca terá. Eu, à beira do fracasso,
não o reconheço ainda.

Enquanto isso tem lugar em mim o advento
do que me define,
e o barro de que sou feito coze por dentro.

Luís Quintais
 A Imprecisa Melancolia

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terça-feira, 15 de março de 2011

Pau Casals - El cant dels ocells (at the White House)

quarta-feira, 9 de março de 2011

Eduardo Bettencourt Pinto


          Homem consigo próprio

É por uma voz que ainda não escutou
que se levanta do inverno.
Esperou anos por uma sombra,
um pedaço de terra sem pedras,
uma janela donde pudesse olhar
a inviolável paisagem,
as distantes casas crepusculares, o pó
que derruba no silêncio
a tangível e cintilante melancolia do olvido.
Tomou a sua vida nas mãos, a transparência solar,
a fluidez ardente da paixão.
Nunca cantou do alto dos palcos da pesporrência
ou entre cintilantes plêiades de comissionistas
da moralidade,
mas nas derrubadas colunas dos templos,
junto às lágrimas e ao sangue
dos dias
em que morria por tanto amar
um ramo de nespereira quebrado
no olhar duma mulher.
Tem agora postura soturna, alquebrada pelo
reumatismo
e uma garça de angústia voa-lhe no coração.
Senta-se no átrio da igreja coçando os joelhos,
cabelos ralos adejando. As verrugas, acentuadas,
são profundas fissuras de mármore.
Alheio, vulnerável, quieto como um álamo,
não se lhe adivinha o andarilho.
Esteve em Nova Iorque, viu ópera,
foi assaltado por um drogado numa galeria
em S. Francisco enquanto se concentrava num
                                                             [Dalí,
comeu pizza olhando, perturbado,
decotes desinibidos numa praça de Paris,
passou nu frente à Casa Branca numa demonstra-
[ção contra a guerra, bebeu
tequila em esconsos povoados mexicanos
[até se esquecer do próprio nome, amou
tão febrilmente que julgou.
pisar de leve a superfície dum paraíso
abstracto. Viveu como um príncipe
deserdado,
e trabalhou numa fábrica de sabões tantos anos
que até a primavera lhe cheirava a sabonete.
Reformado, ombros caídos, mãos calosas
e deformadas pela solidão,
sentiu no peito o ressoar
da última morte.
Fez as malas, juntou fotografias da sua juventude
em estações de neve, entre amigos e abraçado
a uma irlandesa,
seus pais, vultos cinzentos
na idade da memória.
Mas só ao chegar à ilha,
estonteado e perdido,
compreendeu que a saudade
nunca leva um homem
ao princípio do tempo.

Eduardo Bettencourt Pinto
nove rumores do mar
antologia de poesia açoreana contemporânea
organização de eduardo bettencourt pinto
Instituto Camões

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domingo, 6 de março de 2011

Ângelo de Lima

EDD´ORA ADDIO... - MIA SOAVE!...

Aos meus amigos d'ORPHEU

- Mia Soave Ave!... - Alméa?!
 - Maripoza Azual... - Transe!...
Que d'Alado Lidar, Canse...
- Dorta em Paz... - Transpasse Idéa!...

 - Do Occaso pela Epopéa...
Dorto... Stringe... o Corpo Elance...
Vae A'Campa... - Il C'or descanse...
- Mia Soave-Ave!... -Alméa!...

-Não Doe Por Ti Meu Peito...
- Não Choro no Orar Cicio...
-E Profano... -Edd'ora... Eleito!...

- Balsame - a Campa - o Rocio
Que Cahe sobre o Ultimo Leito!...
-Mi'Soave!... Edd'ora Addio!...

Ângelo de Lima
À Sombra de Orfeu
Antologia
Selecção e Prefácio de
Maria Estela Guedes
Colecção Textos Esquecidos
em colaboração com a
Associação Portuguesa de Escritores
Guimarães Editores
1990

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