quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

LEONARDO GANDOLFI


poema


a)


Como se o aceno contrastasse com a chuva
gota a gota a demora vai executando
um exercício solo com o que desce
Próximo e prestes alguém vem com as palavras

Preso às unhas
grãos de areia ou espera


*

A emulsão da sede
e de outros líquidos
boiando há muito pelas mesmas coisas
Perto daqui uma criança cai
da bicicleta e se converte na lembrança de quem lê
Pausa

Junto ao lago
a flor é quando e redor da boca


*

O coágulo ao fundo daquilo que fica
conforma-se à matéria do lagarto
e ao seu interior raio de ação
Como contraponto
a criança levanta-se da bicicleta

Em jejum
o lagarto procura na respiração
a sede e o sábado com que abre a flor


*

A água desce cortando em longitude
o miocárdio com os quais se movimentam
tanto o sal como o chão
Desce cortando repetidas vezes
até nela não ter mais duração
a boca

cuja sede encosta aqui

LEONARDO GANDOLFI
http://asescolhasafectivas.blogspot.com/2006/08/leonardo-gandolfi-mencionado-por.html

Etiquetas:

Margarida Vale de Gato

MULHER AO MAR

MAYDAY lanço, porque a guerra dura

e está vazio o vaso em que parti

e cede ao fundo onde a vaga fura,

suga a fissura, uma falta – não

um tarro de cortiça que vogasse;

especifico: é terracota e fractura,

e eu sou esparsa, e a liquidez maciça.

Tarde, sei, será, se vier socorro:

se transluz pouco ao escuro este sinal,

e a água não prevê qualquer escritura

se jazo aqui: rasura apenas, branda

a costura, fará a onda em ponto

lento um manto sobre o afogamento.

Margarida Vale de Gato

in Sulscrito, revista de literatura, número 1, verão de 2007

http://casadospoetas.blogs.sapo.pt/24532.html

Etiquetas:

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Joana Garrido

Vew on Black

Etiquetas:

Carlos Pinto Coelho

Foi-se embora o senhor "acontece"

Jean Cocteau

O FILHO DO AR

A mãe abre a sombrinha e diz: «Meu filho, avança.»
Um cigano veloz e livre como a dança,
agudo como o raio e como ele feroz,
vê, porém, lá ao longe, a criança que foge,
brincando distraída, sem que a sombrinha branca
a abrigue.
«Socorro», grita a mãe. A criança
perdeu-se, todavia, na névoa da distância.
Podes ameaçar, suplicar, nada serve:
o teu filho fugiu nos braços da quimera.
Ela já tem a voz cansada de chamar:
o filho cai no fundo dum tinteiro, a sonhar.
E noutro sonho julga que entrou, ao acordar:
está na casa onde vivem as crianças raptadas,
como a Ursa Maior, de estrelas construída,
sempre pronta a partir, sempre pronta a parar
- uma casa espantosa, sobre rodas erguida.
E a mãe não sossega, e a mãe já está rouca,
a mãe soluça e volta sempre atrás, como louca,
procurando o seu filho e sem o encontrar.
Desesperada, em vão ela chama a polícia:
o raio e os ladrões têm igual malícia;
a polícia, aliás, não tem um grande faro
e os meninos roubados sabem andar no ar.
Logo pela manhã, ousam a temerosa
travessia no arame, de maillot cor-de-rosa.
Para terem sucesso, quanta calma e perícia!
E a mãe está sentada, de luto, muito triste,
sentada, muito triste, encostada à janela.
É como se o menino não fosse filho dela:
eles surgem de súbito, os meninos raptados,
no campo dos ciganos, à volta da fogueira,
ninguém sabe daonde, onde foram roubados.
Têm direito a vinho, se se faz bom dinheiro.
Ele toca o tambor, ele voa. A mãe morre.
É vasto o mundo - e novo, nocturno, perturbante.
Ó mães, desconfiai das janelas, das portas,
dos feitiços daqueles que os filhos vos transportam
nessas casas que vão por montes e barrancos,
puxadas pela luz de dois cavalos brancos.

Jean Cocteau
O Filho do Ar
in O Filho do Ar
Tradução de Gastão Cruz
Relógio d´Água
1998

Etiquetas:

Juan Ramón Jimenez

Retorno fugaz

¿Cómo era, Dios mío, cómo era?
-¡Oh corazón falaz, mente indecisa!-
¿Era como el pasaje de la brisa?
¿Como la huida de la primavera?
Tan leve, tan voluble, tan lijera
cual estival vilano... ¡Sí! Imprecisa
como sonrisa que se pierde en risa...
¡Vana en el aire, igual que una bandera!

¡Bandera, sonreir, vilano, alada
primavera de junio, brisa pura...!
¡Qué loco fue tu carnaval, qué triste!

Todo tu cambiar trocóse en nada
-¡memoria, ciega abeja de amargura!-
¡No sé cómo eras, yo que sé que fuiste!


Juan Ramón Jimenez
Prémio Nobel 1956
selecção, tradução prólogo e notas de
José Bento
Relógio d´Água
1992

Etiquetas:

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

António Lobo Antunes

RECADO
(bolero)

Estou aqui como se te procurasse
a fingir que não sei aonde estás
queria tanto falar-te e se falasse
dizer as coisas que não sou capaz.

Dizer, eu sei lá, que te perdi
por não saber achar-te à minha beira
e na casa deserta então morri
com a luz do teu sorriso à cabeceira.

Queria tanto falar-te e não consigo
explicar o que se sofre, o que se sente
e perguntar como ao teu retrato digo
se queres casar comigo novamente...

ANTÓNIO LOBO ANTUNES
LETRINHAS DE CANTIGAS
Dom Quixote

Etiquetas:

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Fotografia

José António Gonçalves

O CHAMADO DA FALÉSIA


espera-se por tudo quando a falésia
nos chama por dentro do nevoeiro
cobrindo a ilha

nesse momento pensamos se todo o mundo
será assim vestido de bruma e limpamos
os olhos com as nuvens do horizonte

na verdade sabemos que não e o mar
é como uma estrada indicando um caminho
e o coração uma bússola para orientar a viagem

e ao chamado ecoando pelas serras verdes
e se detendo nas pedras cinzentas dos cumes
não sabemos que dizer como responder

algures apontamos um pedaço de terra
e um dia numa carta à mãe lá confessamos
estou aqui tão distante do lugar
onde num dia como nunca vi outro igual
decidi que hei-de morrer

hoje por lá mora um silêncio
sabendo a demora à saudade caiada de chuva
onde já deviam estar as paredes de cal branca
de uma casa

espere por mim


José António Gonçalves
(inédito.24.4.04)
JAG
http://members.netmadeira.com/jagoncalves/

Etiquetas:

Joaquim Cardoso Dias

Carta dos Trabalhos do Olhar


do outro lado das palavras os ramos altos das figueiras
a misturar o tempo com restos de casas abandonadas

levanto as mãos no meu sonho
e uma ferida de água nas pontas dos dedos
durará aqui como um beijo imaginado

lembrando correndo dormindo

falo da outra face dos rios
de coisas velozes como a terra onde dói um sorriso
onde a noite se dobra nítida ao fervor das sementes
onde o corpo adivinha essa cor rasgada nos lençóis

depois olho-te em segredo
respiro o que tu respiras
escrevo essas palavras adormecidas no ar

olho-te longe da minha insónia
contemplo o horizonte quebrado dos montes
o trigo o feno as estevas rio-me

a sombra dos meus braços move-se
junto aos gatos entre avencas e silenas
fico imóvel atento

onde começará este esquecimento?
como será o meu silêncio no teu rosto?

deita-te sobre mim vem escuta
as árvores abrem-se ao meio nas ruas da vila
nas pedras cansadas nas amoras junto ao sol dos muros

vem não tenhas medo
sou teu e também isto são pormenores
vem era uma vez dois magos numa floresta


Joaquim Cardoso Dias
Em Cinco Dias
Malcata 7 Geografias
Alma Azu

Etiquetas:

António Aragão

POEMA

ah o amável preço da minha fotografia no teu
retrato:
aquele calor da telefonia nascendo no
instante sem ocasião. e o regresso à história
do repouso dos aparelhos ou à demora
apenas
de comprar a cadeira depois de ter dito
aquela palavra no campo
onde crescem mais exactamente os frigoríficos.

quem sabe afinal quando o coração apodrece?

talvez mais exactamente ando o peso
dos passos no nome do rosto.
ou toco docemente
a gasolina no ritual da tua imagem.

olha: este é o interior mais exactamente
da escada no cimo do meu susto.
eis o estilo espantoso de pensar uma espingarda
no lado nu do teu corpo que não escrevo.

quem sabe afinal quando o coração não apodrece?


nós apenas dizemos o cartaz na paragem de deus
e o resto é mais a nosssa dificuldade no
retrato enquanto um anjo digo-te
passeia mais exactamente no pêlo do navio.


ANTÓNIO ARAGÃO
(in "Mais Exactamente P(r)o(bl)emas", 1968;
«Poesia da Ilha», Olhares Atlânticos,
Biblioteca Nacional, organização e Direcção
de José António Gonçalves, Lisboa, 1991)

Etiquetas:

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Ana Paula Inácio

abre o teu manto de burel
amado
e arrasta-me sobre as madressilvas
que do corpo já não sinto o meu
deixa
cair o pano que teceste
e recorta-o
segundo o teu molde
saber-lhe-ás dar destino
ler-lhe o poema original,
a utilidade que lhe justifica a vida
vesti-lo-ás
no dia da tua própria morte
e as marcas
que a tua irmã mais ingénua julga de framboesa
revelar-se-ão do teu próprio sangue
como o teu filho
que morreu sobre as garras do jardim
aquele que soubeste construir
para te subtrair ao medo

Ana Paula Inácio
de As Vinhas de Meu Pai

Etiquetas:

Pierre de Ronsard

Pour Hélène

Quand vous serez bien vieille, au soir à la chandelle,
Assise auprès du feu, devidant e filant,
Direz chantant mês vers, em vous esmerveillant:
"Ronsard me celebroit du temps que j'estois belle."

Lors vous n'auray servant oyant telle nouvelle,
Desja sous le labeur à demy sommeillant,
Qui au bruit de mon nom ne s'aille resveillant,
Benissant vostre nom de louange immortelle.

Je seray sous la terre, et fantôme sans os
Par lês ombres myrteux je prendray mon repôs;
Vous serez au foyer une vielle accroupie,

Regrettant mon amour et vostre fier desdain,
Vivez, si m'en croyez, n'attendez à demain:
Cueillez dês aujourdhuy lês roses de la vie

Pierre de Ronsard

Etiquetas:

William Butler Yeats

When You are Old


When you are old and grey and full of sleep,
Ad nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;



And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.

William Butler Yeats

Ferreira Gullar

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se também não possa
por tanta coisa que leve

já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento

Ferreira Gullar

Etiquetas:

Fernando Echevarría

ÚLTIMA CANÇÃO

Uma alegria a atravessar a pena.
Enquanto a pena se desembacia
e a sua luz deixa a negrura, que era
tão invisível. Mas transparecia.
Uma alegria que pesa.
Sobe, difícil, pela paz. E brilha
a despedir-se do amor da orquestra
indo a um silêncio que quase ainda trila.
Depois, quando a alegria cessa de estar sujeita
ao peso da atmosfera, sobe ainda.
E deixa a base do silêncio aberta
para a pena impregnar sua alegria.

Fernando Echevarría
Uso de Penumbra

Etiquetas:

Outono

Fall

Posted by Picasa

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

haec olim meminisse iuvabit




Fotografias de onomatoh