terça-feira, 27 de abril de 2010
domingo, 25 de abril de 2010
sexta-feira, 23 de abril de 2010
terça-feira, 20 de abril de 2010
segunda-feira, 19 de abril de 2010
terça-feira, 13 de abril de 2010
ALBERT CAMUS
Os curiosos acontecimentos que servem de assunto a esta
história produziram-se em 194 ... , em Oran. Segundo a opinião geral, não estavam aí no seu devido lugar, antes saíam um pouco do habitual. A primeira vista, Oran é, com efeito, uma cidade vulgar, que não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.
A própria cidade, confessemo-lo, é feia. Com 0 seu aspecto calmo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as
latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombas, sem árvores e sem jardins, onde não se sente 0 bater de asas nem o sussurro de folhas, uma cidade neutra, para dizer tudo? Só no céu se lê aí a mudança das estações. A Primavera apenas se anuncia pela qualidade do ar ou pelos cestos de flores trazidos por rapazitos dos arredores; é uma Primavera que se vende nos mercados. Durante 0 Verão, o Sol incendeia as casas demasiado secas e cobre as paredes de uma cinza cinzenta; então, só é possível viver à sombra das persianas corridas. No Outono é, pelo contrário, um dilúvio de lama. Os dias bonitos só vêm no Inverno.
Uma maneira cómoda de travar conhecimento com uma cidade é descobrir como lá se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com 0 mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se aborrecem e se aplicam a criar hábitos. Os nossos concidadãos trabalham muito, mas só para se enriquecerem. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, segundo a sua própria expressão, em fazer negócios.
..........................................................................................................
A Peste
Albert Camus
Colecção Miniatura
Edição "Livros do Brasil" Lisboa
PRIMEIRO ACTO
CENA PRIMEIRA
Numa sala do palácio estão agrupados alguns patrícios que denotam agitação. Entre eles destaca-se um muito idoso.
PRIMEIRO PATRÍCIO
Nada.
VELHO PATRÍCIO
Nada de manhã, nada de tarde.
SEGUNDO PATRÍCIO
Três dias passados, e nada.
VELHO PATRÍCIO
Os mensageiros partem, os mensageiros voltam. Sacodem a cabeça e dizem: "Nada".
SEGUNDO PATRÍCIO
Procura-se em toda a parte, não há nada a fazer.
PRIMEIRO PATRÍCIO
Porque nos estamos a inquietar antes de tempo?
Aguardemos. Voltará talvez como partiu.
VELHO PATRÍCIO
Vi-o sair do palacio. Tinha um olhar estranho.
PRIMEIRO PATRÍCIO
Também eu, e perguntei-Ihe o que tinha.
SEGUNDO PATRÍCIO
Respondeu?
PRIMEIRO PATRÍCIO
Uma única palavra: «Nada».
(Pausa. Entra Helicon, comendo uma cebola).
SEGUNDO PATRÍCIO , sempre nervoso.
É inquietante.
PRIMEIRO PATRÍCIO
Ora, todos os rapazes são assim.
VELHO PATRÍCIO
Claro, a idade tudo perdoa.
SEGUNDO PATRÍCIO
Acha?
PRIMEIRO PATRÍCIO
Esperemos que esqueça.
VELHO PATRÍCIO
Evidentemente! Uma perdida, dez encontradas.
HELICON
E quem vos garante que se trata de amor?
PRIMEIRO PATRÍCIO
Que mais poderia ser?
HELICON
Talvez o fígado. Ou apenas o desgosto de vos ver todos os dias.
Suportaríamos muito melhor os nossos contemporâneos se eles de vez em quando mudassem de ventas.
Mas não, a ementa não varia. É sempre o mesmo fricassé.
VELHO PATRÍCIO
Prefiro pensar que se trata de amor. É mais enternecedor.
HELICON
E tranquilizador. Sobretudo tranquilizador. É uma doença do género das que não poupam nem os inteligentes nem os estúpidos.
PRIMEIRO PATRÍCIO
Os desgostos não são eternos, felizmente. Sois capazes de sofrer mais de um ano?
.....................................................
Calígula
seguido de
O Equívoco
Albert Camus
Colecção Miniatura
Edição "Livros do Brasil" Lisboa
Tesouros do alfarrabista
Etiquetas: antiguidades, literatura
segunda-feira, 12 de abril de 2010
domingo, 11 de abril de 2010
Tradições espirituais
Deus separa os grãos da espiga e o caroço da tâmara. Ele faz sair a vida da morte, e a morte da vida.
Ele é o vosso Senhor.
Não podem afastar-se dele. Ele separa a aurora das trevas.
Decide que a noite e o tempo do repouso. o sol e a lua marcam o seu curso no tempo.
Assim é a ordem estabelecida por aquele que é poderoso e sábio. Foi ele que colocou os astros no firmamento
para vos conduzir no meio das trevas, sobre a terra e os mares. O sábio vê em todo o universo a empresa do seu poder.
Foi ele que vos formou num homem só.
Foi ele que vos preparou um lugar de repouso no seio das vossas mães
e que vos dispôs nos rins dos vossos pais.
O sábio reconhece nisso os efeitos do seu poder.
in Oração do Homem - Uma antologia das tradições espirituais
(apresentação, selecção e tradução de Armando Silva Carvalho e de
José Tolentino Mendonça)
Poemário Assírio & Alvim
2010
Ele é o vosso Senhor.
Não podem afastar-se dele. Ele separa a aurora das trevas.
Decide que a noite e o tempo do repouso. o sol e a lua marcam o seu curso no tempo.
Assim é a ordem estabelecida por aquele que é poderoso e sábio. Foi ele que colocou os astros no firmamento
para vos conduzir no meio das trevas, sobre a terra e os mares. O sábio vê em todo o universo a empresa do seu poder.
Foi ele que vos formou num homem só.
Foi ele que vos preparou um lugar de repouso no seio das vossas mães
e que vos dispôs nos rins dos vossos pais.
O sábio reconhece nisso os efeitos do seu poder.
in Oração do Homem - Uma antologia das tradições espirituais
(apresentação, selecção e tradução de Armando Silva Carvalho e de
José Tolentino Mendonça)
Poemário Assírio & Alvim
2010
Etiquetas: espiritualidade, poesia/poetry/poesie
CARLOS DE OLIVEIRA
INSÓNIA
Penso que sonho. Se é dia, a luz não chega para alumiar o caminho pedregoso; se é noite, as estrelas derramam uma claridade desabitual.
Caminhamos e parece tudo morto: o tempo, ou se cansou já desta longa caminhada e adormeceu, ou morreu também. Esqueci a fisionomia familiar da paisagem e apenas vejo um trémulo ondular de deserto, a silhueta carnuda e torcida dos cactos, as pedras ásperas da estrada.
Chove? Qualquer coisa como isso. E caminhando sempre, há em redor de nós a terra cheia de silêncio.
Será da própria condição das coisas serem silenciosas agora?
CARLOS DE OLIVEIRA (1921-1981) Trabalho Poético
Poemário Assírio & Alvim
2010
Penso que sonho. Se é dia, a luz não chega para alumiar o caminho pedregoso; se é noite, as estrelas derramam uma claridade desabitual.
Caminhamos e parece tudo morto: o tempo, ou se cansou já desta longa caminhada e adormeceu, ou morreu também. Esqueci a fisionomia familiar da paisagem e apenas vejo um trémulo ondular de deserto, a silhueta carnuda e torcida dos cactos, as pedras ásperas da estrada.
Chove? Qualquer coisa como isso. E caminhando sempre, há em redor de nós a terra cheia de silêncio.
Será da própria condição das coisas serem silenciosas agora?
CARLOS DE OLIVEIRA (1921-1981) Trabalho Poético
Poemário Assírio & Alvim
2010
Etiquetas: poesia/poetry/poesie
quinta-feira, 8 de abril de 2010
segunda-feira, 5 de abril de 2010
José Agostinho Baptista
ÁGUIA
Voar, pensava então,
como se num bater de asas se elevasse o
mundo,
como se a primavera rasgasse para sempre
a nuvem escura,
e sobre os meses não caíssem as penas,
como se as minhas garras sustentassem o
cordeiro ou a estrela
e mais para cima o meu bico cansado
levasse o teu coração.
José Agostinho Baptista
Agora e na Hora da Nossa Morte
Voar, pensava então,
como se num bater de asas se elevasse o
mundo,
como se a primavera rasgasse para sempre
a nuvem escura,
e sobre os meses não caíssem as penas,
como se as minhas garras sustentassem o
cordeiro ou a estrela
e mais para cima o meu bico cansado
levasse o teu coração.
José Agostinho Baptista
Agora e na Hora da Nossa Morte
Etiquetas: poesia/poetry/poesie
EEVA-LIISA MÄNNER
PORQUE TU ÉS O ADVERSÁRIO
Protege-nos nesta região acidentada, para onde fomos atirados através dos espaços para brilharmos na neve contra o infinito,
protege-nos das cidades ruindo, dos poderes de papelão, de todas as Romas apodrecidas, quando a História se cansa e as nações se confundem,
protege-nos dos Obscuros e dos Claros, dos poetas e dos escribas sensatos, protege-nos de todos os letrados, judeus e gregos, do Cristo das nações,
porque tu és o Adversário, a águia a que pregaram as asas, não és um homem triste, uma grande consolação, uma fraude que imitamos até aos estigmas e que os padres comedores de lótus adornam de palavras húmidas e meladas,
protege-nos dos sonhos fúteis, protege-nos dos terrores inúteis, acorda-nos eternamente para vermos a nossa culpa de cada dia que não remiste e não nos dês depressa demais o Teu perdão.
Protege o nosso corpo da tentação da imortalidade, a nossa alma, protege-a do êxito e da paz, as nossas recordações, da humana fraqueza, para que não paremos de procurar a pergunta de que nós próprios somos a resposta,
e deixa-nos encontrar para lá do múltiplo o Uno, cujo ser nos continua oculto, cuja beleza nos é inconcebível, cuja influência pesará eternamente em nós e que ficará em si imutável,
que, não existindo, é o coração do que existe; que, não sendo espírito, é o espírito do lobo e do pássaro.
EEVA-LIISA MÄNNER
Traduzida por Manuel Resende
Protege-nos nesta região acidentada, para onde fomos atirados através dos espaços para brilharmos na neve contra o infinito,
protege-nos das cidades ruindo, dos poderes de papelão, de todas as Romas apodrecidas, quando a História se cansa e as nações se confundem,
protege-nos dos Obscuros e dos Claros, dos poetas e dos escribas sensatos, protege-nos de todos os letrados, judeus e gregos, do Cristo das nações,
porque tu és o Adversário, a águia a que pregaram as asas, não és um homem triste, uma grande consolação, uma fraude que imitamos até aos estigmas e que os padres comedores de lótus adornam de palavras húmidas e meladas,
protege-nos dos sonhos fúteis, protege-nos dos terrores inúteis, acorda-nos eternamente para vermos a nossa culpa de cada dia que não remiste e não nos dês depressa demais o Teu perdão.
Protege o nosso corpo da tentação da imortalidade, a nossa alma, protege-a do êxito e da paz, as nossas recordações, da humana fraqueza, para que não paremos de procurar a pergunta de que nós próprios somos a resposta,
e deixa-nos encontrar para lá do múltiplo o Uno, cujo ser nos continua oculto, cuja beleza nos é inconcebível, cuja influência pesará eternamente em nós e que ficará em si imutável,
que, não existindo, é o coração do que existe; que, não sendo espírito, é o espírito do lobo e do pássaro.
EEVA-LIISA MÄNNER
Traduzida por Manuel Resende
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Nuno Dempster
TRÊS MEDITAÇÕES JUNTO DO MAR
Para lá das vidraças as dunas,
e logo a noite fria e o mar sem horizonte,
a praia sem amantes.
Há quanto não se vêem deuses por aqui,
há quanto não os vejo eu?
Bastavam umas asas frementes
ou as marcas na areia do amor,
um rasto de cicios;
não me empolgam as vagas
nem o que imaginado
me trazem outras vozes;
empolga-me a lembrança dos deuses
que de noite habitam os areais
e unem o seu arfar ao arfar das ondas
sem outro nexo que esse,
apenas as estrelas rutilantes, as águas
e as janelas em terra
que fitam em silêncio o mar nocturno.
*
Deserta a praia, as dunas, os cardos,
o mar sem metafísica,
um barco que não leva ninguém,
talvez homens que suam e praguejam;
a manhã cinzenta é de hoje,
não da sonhada génese,
e a voz das ondas é a voz das ondas
e cresce com o som do vento.
No areal não se encontram marcas
ou ecos de palavras desconexas.
Do amor esvaneceu-se o rasto.
Só um deus e uma deusa dormem
na lembrança dos dias breves
sem que ninguém os possa despertar.
*
Talvez a eternidade seja ficar nas dunas
largando as lembranças a pouco e pouco,
e os nomes da infância e do amor
irem acabando até que convocá-los
se torne no céu branco que absortos olhos fitam.
NUNO DEMPSTER
Para lá das vidraças as dunas,
e logo a noite fria e o mar sem horizonte,
a praia sem amantes.
Há quanto não se vêem deuses por aqui,
há quanto não os vejo eu?
Bastavam umas asas frementes
ou as marcas na areia do amor,
um rasto de cicios;
não me empolgam as vagas
nem o que imaginado
me trazem outras vozes;
empolga-me a lembrança dos deuses
que de noite habitam os areais
e unem o seu arfar ao arfar das ondas
sem outro nexo que esse,
apenas as estrelas rutilantes, as águas
e as janelas em terra
que fitam em silêncio o mar nocturno.
*
Deserta a praia, as dunas, os cardos,
o mar sem metafísica,
um barco que não leva ninguém,
talvez homens que suam e praguejam;
a manhã cinzenta é de hoje,
não da sonhada génese,
e a voz das ondas é a voz das ondas
e cresce com o som do vento.
No areal não se encontram marcas
ou ecos de palavras desconexas.
Do amor esvaneceu-se o rasto.
Só um deus e uma deusa dormem
na lembrança dos dias breves
sem que ninguém os possa despertar.
*
Talvez a eternidade seja ficar nas dunas
largando as lembranças a pouco e pouco,
e os nomes da infância e do amor
irem acabando até que convocá-los
se torne no céu branco que absortos olhos fitam.
NUNO DEMPSTER
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domingo, 4 de abril de 2010
Camillo Castello Branco
Ora vamos á historia, já que me coube em sorte
arpoar com penna de ferro, no fundo lodoso d' este tinteiro, as phrases do meu tempo.
Era pescador e caçador Antonio de Queiroz e Menezes. Viu no monte a filha do lavrador de Santo Aleixo. As serras tem sombras do infinito. O coração ahi é maior que as dimensões do peito. O homem como se vê só, no cabeço de um fragoêdo, dá-se grandeza extraordinária, mede-se pelo comprimento de horisonte a horisonte. Se o amor lhe rutilou ahi como um relampago que fulgura n'uma vasta cordilheira de montes, e um amor olympico, titanico, immenso, que disparado sobre a modestia e singeleza de uma rapariga montezinha, faz lembrar Camões:
Qual será o amor bastante
De nympha que sustente o d'um gigante?
Andava elle cursando rethorica em Coimbra para ir vestir o habito de frade fidalgo em S. Vicente de Fora. Tinha vinte e dois annos, e aspecto pouco de bernardo. Era magro e pallido, da pallidez dos que amam, segundo o preceito, ovidiano: Paleat omnis amans. Tinha extasis nos pincaros das serras, como se ouvisse as harmonias das espheras. Sentia o grande vazio que a rethorica lhe nao enchia. Queria o amor, não queria tropos; preferia uma mulher feia, se as ha, á mais nitida metaphora de Cicero ou Vieira.
N'estas idéas o encontrou Josefa da Lage, nos montados da sua freguezia. Córaram ambos. Este rubor era o primeiro lampejo do incendio. Depois, a volta de poucos dias, o fogo levou de assalto aquelle combustivel edificio de innocencia, cheio de fluidos inflammaveis. A serra tinha penhascaes, bosques, cavernas, insinuando o amor selvagem. Rodeava-os uma natureza contemporanea do homem vestido da pelle do seu confrade em civilisação, o grande urso e o grande veado. A forma selvatica e antiga do proscenio deu-lhes geitos de antigos actores da vida animal. Ninguem que as visse, ninguem que lhes lesse os grandes livros do padre Sanches, ácerca do matrimónio, Oh! a solidão, entre dois amantes, faz os poetas; mas talvez primitivos de mais, algum tanto gaelicos, normandos, alheios de tu do o que é epistolographia amorosa,-pelles-vermelhas no rigor, antropologico, á vista do modo como a gente em honesta prosa costuma cazar-se.
Assim seria; mas elles adoravam-se.
-Não serás frade!- disse-lhe o coração a elle.
-Assim que meu pae morrer - disse elle á filha do lavrador - caso comtigo. Vou sentar praça, quer meu pae queira quer não. Sou o morgado, porque meu irmão mais velho morreu.
Ella, para ser feliz até ás lagrimas, não precisava d'estas esperanças. Preferia tel-o, e amal-o nas mattas chilreadas, nos desfiladeiros dos montes, no sinceiral da Insua, nas alcovas de ramagem que só elles e os rouxinoes_conheciam nas margens do Tamega.
Foi por ahi que deslisaram tres mezes do estio e outono de 1812. Elle foi para Coimbra, com farda de cadete.
O velho fidalgo de Cimo de Villa ponderou na mudançaa de idéas do filho. Escodrinhou razões secretas que o movessem; todavia, não, o
contrariou. Tinha meninas para conservar a raça dos Queirozes e Menezes; mas a casta varonil iria pelas gerações alem menos sujeita a reparos,de genealogicos.
Nas suas pesquizas descobriu que o filho, vindo a ferias do Natal, passara o Tamega, e caçara nos montados de Santo Aleixo. Foi visto. É que os arvoredos estavam desfolhados; os choupos da Insua mostravam as grimpas curvadas á flor da corrente arrebatada; nos reconcavos das penedias, em vez dos froixeis de relva, havia lençoes de neve, palmilhada pelos 1obos.Como não tinham florestas confidentes, foram vistos á beira do rio, alli mesmo, na cangosta do Estevão, sentados n'aquella fraga, onde o Luiz moleiro encostou o cadaver de Josefa. O velho não deu a minima importancia á denuncia, logo que lhe disseram quem era a rapariga.
-Antes por lá que pelas criadas da casa - disse o assizado fidalgo.- É rapaz, e precisa de se divertir.
Camillo Castelo Branco
Maria Moysés
Primeira Parte
Livraria Editora de Mattos Moreira
1876
arpoar com penna de ferro, no fundo lodoso d' este tinteiro, as phrases do meu tempo.
Era pescador e caçador Antonio de Queiroz e Menezes. Viu no monte a filha do lavrador de Santo Aleixo. As serras tem sombras do infinito. O coração ahi é maior que as dimensões do peito. O homem como se vê só, no cabeço de um fragoêdo, dá-se grandeza extraordinária, mede-se pelo comprimento de horisonte a horisonte. Se o amor lhe rutilou ahi como um relampago que fulgura n'uma vasta cordilheira de montes, e um amor olympico, titanico, immenso, que disparado sobre a modestia e singeleza de uma rapariga montezinha, faz lembrar Camões:
Qual será o amor bastante
De nympha que sustente o d'um gigante?
Andava elle cursando rethorica em Coimbra para ir vestir o habito de frade fidalgo em S. Vicente de Fora. Tinha vinte e dois annos, e aspecto pouco de bernardo. Era magro e pallido, da pallidez dos que amam, segundo o preceito, ovidiano: Paleat omnis amans. Tinha extasis nos pincaros das serras, como se ouvisse as harmonias das espheras. Sentia o grande vazio que a rethorica lhe nao enchia. Queria o amor, não queria tropos; preferia uma mulher feia, se as ha, á mais nitida metaphora de Cicero ou Vieira.
N'estas idéas o encontrou Josefa da Lage, nos montados da sua freguezia. Córaram ambos. Este rubor era o primeiro lampejo do incendio. Depois, a volta de poucos dias, o fogo levou de assalto aquelle combustivel edificio de innocencia, cheio de fluidos inflammaveis. A serra tinha penhascaes, bosques, cavernas, insinuando o amor selvagem. Rodeava-os uma natureza contemporanea do homem vestido da pelle do seu confrade em civilisação, o grande urso e o grande veado. A forma selvatica e antiga do proscenio deu-lhes geitos de antigos actores da vida animal. Ninguem que as visse, ninguem que lhes lesse os grandes livros do padre Sanches, ácerca do matrimónio, Oh! a solidão, entre dois amantes, faz os poetas; mas talvez primitivos de mais, algum tanto gaelicos, normandos, alheios de tu do o que é epistolographia amorosa,-pelles-vermelhas no rigor, antropologico, á vista do modo como a gente em honesta prosa costuma cazar-se.
Assim seria; mas elles adoravam-se.
-Não serás frade!- disse-lhe o coração a elle.
-Assim que meu pae morrer - disse elle á filha do lavrador - caso comtigo. Vou sentar praça, quer meu pae queira quer não. Sou o morgado, porque meu irmão mais velho morreu.
Ella, para ser feliz até ás lagrimas, não precisava d'estas esperanças. Preferia tel-o, e amal-o nas mattas chilreadas, nos desfiladeiros dos montes, no sinceiral da Insua, nas alcovas de ramagem que só elles e os rouxinoes_conheciam nas margens do Tamega.
Foi por ahi que deslisaram tres mezes do estio e outono de 1812. Elle foi para Coimbra, com farda de cadete.
O velho fidalgo de Cimo de Villa ponderou na mudançaa de idéas do filho. Escodrinhou razões secretas que o movessem; todavia, não, o
contrariou. Tinha meninas para conservar a raça dos Queirozes e Menezes; mas a casta varonil iria pelas gerações alem menos sujeita a reparos,de genealogicos.
Nas suas pesquizas descobriu que o filho, vindo a ferias do Natal, passara o Tamega, e caçara nos montados de Santo Aleixo. Foi visto. É que os arvoredos estavam desfolhados; os choupos da Insua mostravam as grimpas curvadas á flor da corrente arrebatada; nos reconcavos das penedias, em vez dos froixeis de relva, havia lençoes de neve, palmilhada pelos 1obos.Como não tinham florestas confidentes, foram vistos á beira do rio, alli mesmo, na cangosta do Estevão, sentados n'aquella fraga, onde o Luiz moleiro encostou o cadaver de Josefa. O velho não deu a minima importancia á denuncia, logo que lhe disseram quem era a rapariga.
-Antes por lá que pelas criadas da casa - disse o assizado fidalgo.- É rapaz, e precisa de se divertir.
Camillo Castelo Branco
Maria Moysés
Primeira Parte
Livraria Editora de Mattos Moreira
1876
Etiquetas: antiguidades/literatura